Foi num porto português, mesmo ao pé do Cabo do Mundo, onde vivia o nosso amigo Pony, numa casa branca em frente ao mar, que nasceram “As Amarguinhas”. Numa festa de carnaval no início dos anos 90, um grupo de amigos músicos resolveram fantasiar-se com vestes dos anos 70 e fazer remixes aleatórias de temas da época. Sem propósito nem objectivo – era Carnaval, era divertido, não havia streaming nem redes sociais, e a música era uma linguagem de celebração. De forma mais ou menos inesperada, no ano seguinte a festa migrou para o kartódromo ao lado, onde teve que ser duplicada para acolher a quantidade de gente que juntou. De Perafita alastraram-se ao resto do país, receberam uma proposta de uma editora discográfica e ganharam visibilidade na rádio, televisão, discotecas e salas. Entraram no repertório musical do contexto histórico. Dois discos e menos de uma década depois eclipsaram-se. Mas perduraram na memória cultural, e transitaram para bandas sonoras televisivas e playlists passadas de mão em mão. Girls que nasceram bem depois continuaram a debater-se com pais que não as querem deixar sair quando elas têm mesmo, mesmo de ir. E a pedir roupa emprestada.
Ao longo de 25 anos de retiro, “As Amarguinhas” foram instadas a actuar tantas vezes quantas declinaram. Mas o convite para o espectáculo “Todos Pelo Coliseu” chega revestido de uma natureza diferente. O foco não é a banda, mas a recriação do contexto em que a sociedade civil de 1995 se sublevou e resgatou o ícone musical da cidade. “As Amarguinhas” tinham estado lá, e o apelo emana um aroma de agradecimento à cidade, aos “Amigos do Coliseu”, e a todos os devotos da arte. Adicionalmente, apela à ambição pedagógica de alertar os actuais atletas dos smartphones que é preciso tirar o rabo do sofá para mudar o mundo.
Ainda assim, os oito elementos d’”As Amarguinhas” dividem-se acerca de regressar ou não onde foram felizes – é difícil escolher entre conservar memórias ou arriscar maculá-las. Quase todos eles continuam ligados à música, mas há quem nunca mais se tenha apresentado diante de uma audiência. Conversam como amigos de sempre, que conhecem os silêncios uns dos outros. “Os meus filhos nunca nos viram juntos em palco”, equaciona a Cris; “a minha filha esteve connosco no palco dentro da minha barriga”, recorda a Pat; “Vou ter que cantar fora do meu tom” pondera a Tchini. Os “Bocas de Sino” são menos dubitativos – “É p’ra tocar? Vam’ ‘bora”.
A logística dos ensaios não é fácil – todos têm vidas profissionais, compromissos familiares e projectos artísticos paralelos. O Muas vive no estrangeiro, o Sílver tem horários exigentes na RTP, o Pony está a mudar de casa. Fazem um calendário exaustivo e ensaiam, primeiro na sala do Topo e, em seguida, no estúdio do Pedro Vidal, que lhes abre as portas e a boa disposição. Mal se atiram ao trabalho confirmam que a energia que flui entre eles tem a perenidade da aptidão para andar de bicicleta – “oito pessoas que, juntas, pegam fogo”, “não é fácil, mas é girissimo, e estamos a aproveitar cada momento”, “é muito emocionante”.



Para além do som, há que recuperar a estética característica d’”As Amarguinhas”. Superam-se ao conseguir visuais adequados aos tempos antigos e adaptados à modernidade. Bocas de sino ou 501, “com óculos escuros não vejo nada”, plataformas que desafiam a gravidade, “Não quero mini saia para ter liberdade de me mexer sem constrangimentos”, flores poderosas como a música, confettis surpresa.
Chegam ao Coliseu à hora marcada, como num protocolo matrimonial: primeiro os rapazes que já são homens, depois as raparigas que se fizeram belas mulheres. Enquanto se preparam para fazer som palram com toda a gente – dirigentes, músicos, técnicos, assistentes – como se tivessem saído dos bastidores na véspera, e não há um quarto de século. Não são iguais, são uma versão melhorada do que eram. Trazem neles o passado e o futuro: o filho do Topo, também músico, deslumbra-se perante o Hammond revestido a madeira, enquanto a filha da Pat orienta a cobertura para as redes sociais. A arte é uma sopa de pedra intergeracional.
O checksound é o primeiro anel do inferno da espera. O nervosismo usa pantufas. Instrumentos primeiro. Bateria, tchá-tum-tum, agora o baixo, “vês a diferença entre marcar notas e tocar?”, venham as guitarras, teclados. “Estão todos confortáveis? Então só vozes – uma de cada vez, depois as três juntas.” Cris aproxima-se do microfone e projecta à capella “É num porto italiano / Mesmo ao pé das montanhas / Que vive o nosso amigo Marco”. Os fotógrafos pousam as máquinas, hipnotizados. “Agora outra”, diz o técnico, que também se chama Marco. É a vez da Pat “Ele acorda, muito cedo / Para ajudar a sua querida mãmã”. Ninguém respira. A seguinte, pede a régie. “Mas um dia a tristeza / chega ao seu coração”, canta, forte, Tchini. Cada uma das três vozes levanta voo até à cúpula do recinto como um sonho, dá uma reviravolta, e aterra sobre as almas boquiabertas pousadas no soalho.









Investem algum tempo a ajustar monitores e a equilibrar volumes, com rigor, sem facilitismos. Finalmente testam toda a banda com vozes. Uma e outra vez. E mais outra ainda. Os últimos resquícios de tensão dissolvem-se numa cumplicidade em que deixam de estar a fazer som, para se entregarem à felicidade de tocarem e cantarem juntos, divertidos, entre sorrisos e danças.
Passam a tarde no Coliseu a interagir entre eles e com os outros. Dão entrevistas à RTP, à TSF, ao JN. Fazem jam sessions e desfiles de outfits nos camarins. Tiram fotografias, riem, recordam, abraçam, petiscam. Juntam-se à azáfama geral, colam flores nos microfones, dão os últimos retoques nas roupas e perucas. Procuram cadeiras para descansar enquanto bebem água e chá. Jantam juntos nas instalações do Coliseu e esperam, cada um a gerir a ansiedade o melhor que pode, e a ajudar os outros o melhor que sabe.






Quando as imagens dos ecrãs laterais mostram a actuação de 1995, os cinco bocas de sino sobem ao palco, engalanados em calças e sapatos brancos envernizados, camisas contrastantes, perucas idênticas, óculos retro. Sob as luzes distinguem-se apenas pelas cores das camisas e pelos instrumentos. Cisco instala-se atrás da bateria, Silver ao lado dele, depois de tropeçar no estrado, Muas e Pony ajustam as guitarras ao ombro, Topo segura o baixo. O público tenta sincronizar o cérebro e os sentidos – como é que eles podem parecer iguais ao que eram há 30 anos?!… As frontgirls desfilam com vagar estudado, debaixo das cabeleiras tricolores que as identificam, cada uma com uma flor gigante nas mãos. Cris é uma benção de chic pink glitter suavizada pelos movimentos de um casaco de franjas brancas, Pat aposta na elegância do vintage integral e numa imensa peruca ruiva, Tchini enverga a mística completa do país das maravilhas . O mistério adensa-se: “Mas como é que elas podem parecer iguais ao que eram há 30 anos?!…”.









Quando entra o “Marco” o público absorve-o como água no deserto. “Quando um dia a tristeza chega ao seu coração” desencadeia um fenómeno quântico energético que se propaga pela sala. “Diabo à Solta” liberta a diversão, o prazer de cantarolar e coreografar. O anúncio do “Cornetto” eleva os sorrisos a gargalhadas e “Toc-Toc” rebenta como a comporta de uma barragem, artistas e audiência fundem-se numa só entidade sem rótulo, unida pelas vibrações dos subgraves, pela pulsação das cordas, e pelo júbilo das vozes. Sem pausas, ao primeiro acorde de “Just Girls” toda a audiência canta e a sala fica de pernas para o ar – os artistas são espectadores e os espectadores são amplificadores. As flores são lançadas à plateia e o palco incendeia-se, levando com ele a audiência, num delírio rematado por uma explosão de confettis. “A noite é toda tua, é só curtir”!






Antes de saírem do estrado, os oito alinham-se, abraçados, diante da sala e fazem uma vénia ao Coliseu. Saem com a mesma alegria com que entraram. Por 15 minutos o mundo foi um lugar melhor, habitado pela esperança do Marco, divertido por um diabo à solta, deliciado com um gelado, governado pela energia do rock, e em que a todos fica bem uma camisola amarela.

Obrigado Amarginhas.
TEXTO: Ana Cristina Carqueja