Salvé, Coliseu

Miguel Guedes, o Ministério da Cultura, José Carlos Tinoco, Óscar Branco, a Tuna Universitária do Porto, António Pinho Vargas, GNR, As Amarguinhas, BAN, Sérgio Godinho e Pedro Abrunhosa fazem uma vénia ao Coliseu e ao Porto.

Ao longo da história, o Porto sempre foi um adolescente rebelde. Há 30 anos, em vez de ajoelhar perante a conversão do Coliseu à IURD, a sociedade civil e a elite cultural da cidade agrilhoou-se às grades e reivindicou o templo. Foi a mais recente sublevação popular do Porto, corolada por um espectáculo musical solidário, e concluída com sucesso através da entrega do espaço à Associação Amigos do Coliseu do Porto.

A amizade não se esquece, e a 30/10/2025 foi celebrada com a iniciativa “Todos pelo Coliseu”, que incluiu o lançamento de um livro, conversas com protagonistas da época e um concerto apresentado pelo mesmo Júlio Magalhães que desempenhou essa função em 1995. Os momentos musicais foram criteriosamente escolhidos – a Tuna Universitária do Porto, António Pinho Vargas, GNR, As Amarguinhas, BAN, Sérgio Godinho e Pedro Abrunhosa. O liricíssimo foi entregue a José Carlos Tinoco e o humor a Óscar Branco.

Os lugares no recinto esgotaram há meses, entre manifestantes de há três décadas, quem não esteve lá mas seguiu a sublevação pela comunicação social, quem então não era sequer nascido, figuras políticas da edilidade e fãs dos artistas convidados.

O palco abre com a Tuna Universitária do Porto – cerca de 4 dezenas de estudantes marcam a solenidade do evento com um desempenho de profissionalismo e talento ao melhor nível da reputação da academia. Entoam “Ai Timor” de João Gil e João Monge, seguido de um comovente “Porto Sentido” de Rui Veloso e Carlos Tê, e rematado pelo incontornável “Amor de Estudante” de Zeca Afonso. Despedem-se com o arcadiano grito F-R-A e desfilam para os bastidores numa imponente fila indiana.

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O magnifico piano de cauda do Coliseu tem a honra de acolher António Pinho Vargas, que numa simplicidade paradoxal à sua natureza erudita funde-se com ele em três peças de elegância e fluidez atordoantes – “June”, “Tom Waits” e “Dança dos Pássaros”. Toca em casa, na sua casa, na casa de cada um nós e na casa que o resgate do Coliseu assegurou ser de todos nós. A humildade com que recortou as peças originais para caberem no formato que lhe estava destinada acentua a enormidade do artista. Corta-nos a respiração, recuperada apenas numa uníssona ovação em pé.

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José Carlos Tinoco fez a escolha pessoal de declamar Paulo Abrunhosa, com um imperdível Domingos Alves a recordar que o piano é um instrumento de cordas. “Serei um artista ou antes autista?” é uma interrogação de relevante actualidade . A mensagem final fica a ecoar pela cúpula: “A caminhada é para onde ela aponta e é tudo o que conta.”.

Rui Reininho regressa a 1995 nos écrans laterais, e salta para o presente com Toli, Romão e banda para interpretar GNR. São um dos projectos mais influentes de sempre, estão em plena digressão de 45 anos de carreira, e têm um intercâmbio afectivo único com os portuenses. “Video Maria” rasga a noite de chuva nesta igreja quente, “Efetivamente” vagueia pelo submundo invicto, onde a “Pronuncia do Norte” nos faz acender as luzes que substituíram os isqueiros, e “Dunas” liberta as vozes.

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Óscar Branco irrompe pela ilha central da plateia disfarçado, numa chamada telefónica de humor político, sobe as escadas do estrado, revela-se, e conta-nos numa rábula bíblica sobre a ligação entre o Genesis e a suprema criação do “gajo do Porto”. As gargalhadas são muitas, e criam a plataforma emocional adequada para o que está para vir.

As Amarguinhas” deslizam magicamente por este estado de boa disposição – primeiro os cinco bocas de sino em modo “Ken”, depois as três poderosas frontgirls, com indumentárias de extravagância repleta de classe, cada uma num sorriso rasgado. A expectativa era grande, e confirma-se como o mais elevado pico de adrenalina do serão. Há 25 anos que não se apresentavam em público, mas o Coliseu pelo qual lutavam nos écrans reuniu-os numa exaltação de felicidade que abraça a audiência e a convida a dançar. A inesquecível remix de “Marco” tece um tapete de referências comuns para absorver a energia de “Diabo à Solta”, desinibir com o breve anúncio do “Cornetto” e largar “Toc-Toc” em tamanha explosão em energia, que ao primeiro acorde de “Just Girls” não há um joelho flectido nas cadeiras. Uma aparição que terminou num lançamento de confetis, e que será merecedora de um especial autónomo.

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Não é fácil para Júlio Magalhães preencher o intervalo, nem para os BAN instalarem a vibração new-wave, sobretudo em formato minimalista. Mas um descontraído João Loureiro dá conta do recado, apoiado pelo virtuosismo polivalente de Rui Fernandes e amparado pela voz da Mariana. Sem sobressaltos, percorrem “Mundo de Aventuras”, atravessam “Surrealizar”, passeiam por “Dias Atlanticos” e, é claro, espraiam-se pelo “Irreal Social”.

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O momento protocolar da noite aproxima Miguel Guedes, director artístico do Coliseu, e Margarida Balseiro Lopes, Ministra da Cultura, numa homenagem institucional de reconhecimento pelo feito de há 30 anos, pelo que tem sido feito deste então, e pelo que há a fazer.

Sérgio Godinho tem sido a personagem cultural em destaque no ano de 2025, e faz-se acompanhar por Filipe Raposo ao piano para nos lembrar porquê. As suas canções têm lugar cativo na memória colectiva nacional e enchem todo o ar do Coliseu perante um público rendido, que as entoa sem hesitar. Com “Democracia”, “Cuidado com as imitações”, “Grão da Mesma Mó” e “Com um brilhozinho nos olhos”Sérgio Godinho “dá-nos a liberdade de cada dia ser o primeiro do resto das nossas vidas.

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O encerramento é preenchido por Pedro Abrunhosa, cuja imagem algemado às grades do Coliseu simbolizou a revolução popular e artística de há 30 anos. Traz com ele os Comité Caviar, um colectivo de grandes músicos que contribui para a sua cimentada eficácia. O público aplaude os grande êxitos “Não Posso Mais”, “Socorro”, “Talvez F@@@@”, “Tudo o que Eu Te Dou” juntando-se aos refrões. É um fecho em grande estilo e em glória.

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Quando tudo termina, já o dia seguinte tinha começado. Que bela transição. Salvé Coliseu.

TEXTO: Ana Cristina Carqueja